segunda-feira, 19 de maio de 2008

O arquiteto de pesadelos

Há quinze dias. Quinze. Religiosamente, sucessivamente, dolorosamente, sonho com a morte. Não com a morte exatamente, a velha com a foice e enxada; mas com o espírito da morte, ou tudo aquilo que compõe o cenário da morte. Rigorosamente. Quinze dias, sem falha de um sequer. Quinze: cemitérios, cortejos fúnebres, covas, catacumbas, defuntos, procissões, enterros, lamentos, choros, carpideiras, cemitérios, defuntos, cortejos, catacumbas... Quinze dias de sonhos.

Eles vêm em capítulos, mas a fotografia é a mesma; é o mesmo diretor, o mesmo fundo musical: um silêncio a la Peter Gast; é sempre o mesmo roteiro inacabado. No último episódio, uma amiga me conduzia numa bicicleta cargueira pelas ruas de uma cidade estranha cujo colorido transitava entre a “Lista de Schindler” e “A Vida é Bela”; imensos portões de ferros abrigam estátuas antigas, de olhares vagos e semblantes monótonos. Um cortejo fúnebre invade a rua de asfalto úmido e vozes vestidas de branco entoam um cântico de lamento profundo: e um solitário camelo o esquife conduz. A morte parece-me, neste sonho em particular, muito mais trágica que nos episódios anteriores, pois que os que conduzem o morto são também almas depenadas, mas vivas; são espelhos de gente, tatuagens de vida; os lamentos são mais uma auto-piedade que saudade do morto verdadeiro; inadvertidamente, a cargueira avança sobre a procissão das almas e nós – em cujos semblantes pairam ares de zombaria e desprezo – estamos cara a cara com o defunto. Eu e a amiga Cláudia estamos despertos daquela dor, mas o ambiente é de uma atmosfera pesada e nossos corpos parecem ser impelidos a abandonar o local, que não nos pertence.

Em outro episódio, estou acompanhado de duas pessoas que me guiam ao cemitério localizado na praça Tancredo Neves, onde as cruzes são pequenas e as covas, devidamente cobertas pela vegetação, sem ondulações no terreno, sem sinais. Indago ao cicerone por que três nomes na mesma cova e o sujeito-obscuro esclarece que os dois primeiros foram retirados para dar lugar ao meu pai. Não me estranha o fato. Vislumbro sem qualquer sentimento as demais covas, que adivinho existirem, pois que não visíveis, e saio andando pelas avenidas da cidade. Não há fundo musical, nem sentimento de dor, nem riscos. Apenas a informação. Sei que ali, na praça Tancredo Neves, há mortos de todas as origens que se sucedem no terreno, abrigando-se nos abrigos uns dos outros, uma irmandade de mortos saudáveis.

Em certo sonho – confesso – doeu-me não encontrar o caminho da cidade. O sentimento de aventura deu lugar ao desespero. Amigos-obscuros, mas amigos, seguiam-se numa jornada composta de risos histéricos, típicos de dores inconfessáveis. A mim não me restava dúvidas quanto ao rumo da cidade, mas por sobre as catacumbas de um cemitério imenso o céu parecia maior; eram tumbas imensas, cimentadas de cima a baixo, sem quaisquer inscrições de nomes ou datas; cada uma parecia comportar famílias inteiras, de épocas distantíssimas, muito distantes; foi neste capítulo que achei a saída: Vitória da Conquista era vislumbrada numa distância magnífica, mas o fato de poder vê-la dera-me alento inédito e Drummond erguia das trevas seu canto doido, “não cantes a tua cidade”; senti-me encorajado a permanecer com os obscuros nos jardins dos mortos, podendo enxergar a cidade na distância descomunal, mas tão próxima e tão quente, e tão pálida, e tão fria...

O xadrez fez-me companhia neste que foi o episódio mais hilário e amedrontador, pois que o defunto, esquartejado, tinha os grandes olhos abertos sobre mim e esboçava uma verdade que teimava em não abandonar seus lábios roxos. O Cemitério da Saudade e sua capela estavam vazios quando entrei; um minuto depois estavam agrupadas inúmeras pessoas que choravam e riam enquanto lembravam as aventuras de um morto que não pude ver. À medida que eu tentava escapar da bestialidade, o ambiente se tornava ainda mais insuportável, uma zombaria irritante; doía-me principalmente a impotência de meu corpo e a indiferença dos demais. Uma indiferença cínica, uma indiferença mal-intencionada, que parecia querer dizer algo sobre mim; o som dos risos impregnaram as paredes cinzas e as vozes e os choros emanavam das paredes e dos tetos; tudo ali era desespero e riso e um morto que não tinha corpo, que não existia, num ritual macabro de histeria coletiva.

Ontem, ao dormir, fiz questão de projetar as imagens que queria ver nos sonhos; arquitetei meu pesadelo. Mas acordei suando frio. Fui ao banheiro lavar o rosto numa água gélida e, aos poucos, vieram-me à mente as imagens do sonho: eram cemitérios de andares, prédios que abrigavam mortos que falavam entre si numa linguagem inatingível. Aos poucos, a mente abria janelas e os sonhos iam clarificando o juízo. Eram quatro e quarenta da manhã; olhei pela janela da rua e uma densa neblina cobria a serra do periperi; no meu bicama, sentado, ouvi uma meia hora de Mozart e voltei à cama. Adormeço e retomo o mesmo sonho na mesma cena onde havia acordado; um sentimento de vazio pleno abocanhou-me: as vozes sumiram e o cinza-morto das paredes era amedrontador. Cemitérios gigantescos de andares, ruas desertas e um desejo de ser éter. Luzes mortas, céu escuro – embora dia – e ausência completa de vida humana.

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