quarta-feira, 30 de abril de 2008

Baianidade em pessoa - Dorival Caymmi comemora 94 anos em família, com bolo e guaraná

Responsável em grande parte pela identidade cultural que a Bahia construiu no país e no exterior desde o final da década de 1930, o cantor e compositor Dorival Caymmi completa 94 anos, hoje, em seu apartamento em Copacabana, no Rio de Janeiro, ao lado da mulher, Stella Maris, 86, e dos seus três filhos (Nana, Dori e Danilo), sete netos e cinco bisnetos.

Pode-se falar numa tripla e íntima comemoração: ontem, Nana Caymmi fez 67 anos e hoje Dorival e Stella também celebram 68 anos de casamento (eles se conheceram quando ela se apresentava num programa de calouros da lendária Rádio Nacional). A festa, com bolo e guaraná, acontece no final da tarde, informa por telefone uma bem-humorada e realista Nana.

“A família vai estar toda reunida. Dori (NR: o compositor e arranjador mora em Los Angeles, nos EUA) veio para o aniversário. Todos os filhos, netos e bisnetos estarão juntos. Mamãe vai comer bolos alemães, que não têm açúcar, e os de papai são feitos em casa mesmo. Também mandei fazer um caruru para ele dar uma bicada. Espero não matar o papai (risos)”.

Nana, que entra em estúdio no final de maio para gravar um álbum de inéditas temperado por algumas regravações, mora no Leblon, mas visita os pais todo dia. “Tem aparato de enfermagem, mas fico 24 horas no ar, principalmente por causa da mamãe que é um poço de doenças. Papai tem problemas de velho, ouve pouco, não lê mais e não toca mais, o que é difícil para ele. Felizmente, mantém-se lúcido e é muito paciente”.

Diferentemente do antigo apartamento, a nova morada de Caymmi, na Praça Lido, tem vista para o mar e árvores. “Até achei que ele não ia gostar, porque velho não gosta de mudar. O outro, que fica também em Copacabana, foi cercado por prédios. Papai tem síndrome de maresia. O novo dá pro mar, bate muito sol e ele tá lá contente com a tartaruga que ganhou”.

Um dos precursores da bossa nova e maior baiano vivo, Caymmi pegou um navio em Salvador em 1938, aos 22 anos, rumo ao Rio, onde produziria, via sambas-canções, a parte urbana da sua obra. A Bahia, porém, tão bem cantada por ele em hinos como A lenda do Abaeté, É doce morrer no mar, Saudade de Itapoã e Samba da minha terra, nunca deixou de ser a sua essência.

Na verdade, o mestre da música popular brasileira com suas canções praieiras criou uma sociedade ideal, com pessoas simples e felizes, personagens folclóricos, lugares lindos, clima agradável... Uma Bahia utópica e que, juntamente com a literatura do amigo e cúmplice Jorge Amado (1912-2001), difundiu mundo afora a identidade baiana que conhecemos hoje.

Uma imagem tão deliciosa quanto os doces e as comidas que Caymmi apreciava na infância e adolescência passadas na boa terra. “Graças à família Burgos, sempre tem comida da Bahia para ele aqui, tipo puba e acaçá, que é um bolo de milho enrolado, ainda quente, em folha de bananeira. Eu não vejo isso nem mais aí na Bahia. E não pode faltar farinha”, conta a filha.

Em agosto de 2006, depois de 11 anos sem pisar em Salvador, Caymmi voltou à cidade para receber o Prêmio Nacional Jorge Amado de Literatura e Arte. “A Bahia que ele carrega no coração é uma Bahia que não existe mais. Agora mesmo, ele ficou triste ao saber que o novo gabarito de Salvador permite a construção de prédios de até 18 andares na orla”, diz Nana.

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Um arquiteto da canção brasileira

Em Dorival Caymmi, autor de cerca de cem composições, qualidade, e não quantidade, produziu uma obra extremamente singular e que pode ser considerada como um dos pilares da construção da canção brasileira. A sua folclórica fama de preguiçoso deve ser entendida, na verdade, como uma grande virtude, um traço perfeccionista da sua personalidade musical.

Através da batida do seu violão (aparentemente primitiva, mas espontaneamente inspirada nas harmonias de compositores eruditos como Ravel, Debussy, Bach e Mussorgski) e do seu canto confidente, o homem praieiro, a herança africana, os personagens baianos, as mulheres sestrosas e até um sentimento de carioquismo cruzaram os limites culturais e dionisíacos de um Brasil que fazia a transição entre o rural e o urbano.

A música de Caymmi é um grande exemplo de confluência entre o simples e o sofisticado a partir de elementos naturais como o vento, o mar, a morena e a terra. Uma confluência traduzida em canções praieiras, sambas, sambas-canções e toadas tão autorais (ele foi um dos primeiros compositores do país a gravar suas próprias canções), que o transformaram no melhor intérprete de si mesmo. A Bahia lhe deve muito. (HB)

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